por Luís A. W. Salvi *
Nenhum segredo está mais bem guardado do que aquele que se imagina revelado, e nenhum cofre é mais seguro do que aquele que se perdeu a chave. Acaso alguém suspeita que a Doutrina Secreta esteja cercada de sigilos? Na sua época Blavatsky deu indicações a respeito. E hoje tem-se todos os motivos para conjeturar tal coisa.
1. A aventura do conhecimento
Para fazer frente ao monumental desafio de interpretar as Estâncias de Dzyan -este precioso tantra Kalachakra que parece manter toda a pureza das suas fontes originais-, a Autora valeu-se dos instrumentos que tinha à mão. HPB não tardou a intuir que os 35 textos exotéricos (ou de divulgação popular) de comentários do Código-Fonte Senzar original, seriam os 36 Puranas existentes na Índia –pois todo Purana trata também de cosmogonia, cosmologia e ciclos cósmicos. Versões do popular Bhagavata Purana já eram conhecidas na Europa há mais de um século a partir das traduções francesas. E desde 1840 havia a célebre versão inglesa de Horace H. Wilson do Vishnu Purana.
Estas seriam porém apenas as suas bases. De posse dos misteriosos documentos que eram as Estâncias de Dzyan -tão elípticos quanto ricos de indicações esotéricas-, aspirava por manejar aquelas informações como um virtuose a jogar com alguns simples acordes básicos –afinal, sabia-se orientada internamente por seus sábios Mentores-, sob o risco porém de por vezes soar mais como o aprendiz de feiticeiro em suas primeiras lições, ao buscar misturar também tais informações com a Ciência Moderna, com a Mitologia Ocidental, com a Religião e com a própria Filosofia. Aqui entra pois o papel do seu anfitrião oriental T. Subba Row, instando-lhe a manejar com cuidado todas aquelas informações tradicionais da Índia Védica.
À luz dos Livros de Dzyan ela soube da evolução de cinco raças; provavelmente as duas últimas ainda estariam por vir, imaginou, movida por sua arraigada crença de que “o sete é a escala da Natureza”, desconhecendo talvez que os ciclos cósmicos costumam estar completos apenas com cinco divisões, haja vista a natureza das mandalas –adiante voltaremos a esta questão.
Compreendeu também que os acontecimentos da Terceira Raça colocaram um marco na evolução cósmica e da própria humanidade: a partir dali começaria a ronda atual, que seria também um Dia de Brahma. Porém o seu verdadeiro marco seria a Quarta Raça, a Atlante, “a primeira verdadeiramente humana”, declarou ela com imprecisão semântica. As medidas do Manvantara eram conhecidas: 4,3 milhões de anos, dentro daquele “Grande Ano Humano” que os textos orientais costumam descrever. Portanto, o começo da Atlântida também deveria beirar por aí. E tudo isto parecia soar original: ninguém havia jamais determinado os ciclos das raças antigas -ao menos dentro das exóticas cronologias da literatura religiosa oriental.
Mas é então que também entra o aprendiz de feiticeiro, que faz suas misturas temerárias. Ao tentar dar crédito e incluir velhas lendas ocidentais como aquelas de Platão, quis estender literalmente a Atlântida até então, sem saber que estava confundindo modelos distintos de cronologias -misturando as águas de dois oceanos paralelos, e sujeitando-se aos riscos que correm os navegadores ousados nestas turbulentas situações…
O “Grande Ano Divino” do Manvantara de 12 mil anos, acionado através da Chave Solar de 360 da Cosmologia tântrica (1), lhe soaria como algo por demais “transcendental” para ser considerado. Queria pensar que quanto mais “divino” fosse um ciclo, maior ele também haveria de ser, e que os nossos tempos de Kali Yuga em especial não mereceriam este tipo de enquadramento. O humilde “Grande Ano de Platão” dos gregos não mereceria estar em pé de igualdade com os antigos ciclos orientais, mesmo o Ano Persa de 12 mil anos deveria ser algo mais astronômico. (2)
E no entanto, Platão –que não era nenhum tolo- também herdou os conhecimentos persas. Um tempo amplo sempre foi sinônimo de samsara e não de nirvana. Um tempo regido pelas Hierarquias necessariamente deveria ser relativamente breve, mesmo atravessando os seus períodos de crise e de renovação. Os ciclos purânicos foram muito mais talhados para ocultar os fatos do que para desvelá-los. O “Tempo Divino” representa uma informação ocultista científica, velada pelo “Tempo Humano” que corresponde a uma energia exotérica religiosa.(3)
Tocaria ainda calcular a raça Árya atual. Esta raça deveria ser então menor, uma vez que a Autora buscava associar os yugas do Manvantara a “raças”, seguindo também certas indicações dadas nas Estâncias de Dzyan. Escreveu ela na Doutrina Secreta sobre a proporção 4-3-2-1 dos ciclos do Manvantara:
“A sacralidade do ciclo de 4320, com cifras adicionais, reside no facto de as figuras que o compõem, tomadas separadamente ou unidas em várias combinações, serem todas simbólicas dos maiores mistérios da Natureza. (...) São números nunca errantes, perpetuamente recorrentes, revelando, para quem estuda os segredos da Natureza, um Sistema verdadeiramente divino, um plano inteligente na Cosmogonia, que resulta em divisões cósmicas naturais de tempos, estações, influências invisíveis, fenômenos astronômicos, com sua ação e reação de natureza terrena e até moral; sobre nascimento, morte e crescimento, sobre saúde e doença. Todos estes eventos naturais baseiam-se e dependem de processos cíclicos no próprio Kosmos, produzindo movimentos periódicos que, agindo de fora, afetam a Terra e tudo o que nela vive e respira, de uma extremidade à outra de qualquer Manvantara. Causas e efeitos são esotéricos, exotéricos e endexotéricos,(4) por assim dizer.” (D.S., Vol. 2, pgs. 73-4).
Os Yugas representam as divisões do Manvantara e do Pralaya. São conhecidas outras divisões para as próprias raças, mais simétricas ou regulares, considerando se tratar de ciclos também diferentes em suas proporções. Tais ciclos antropológicos tendem a ocupar períodos de 5 mil anos. As divisões quaternárias chamam-se às vezes de “Idades Metálicas”, estão relacionadas aos Quatro Elementos e acham-se naturalmente presentes também nas cronologias simétricas ou solares.
Sucede então que o valor 12 (que é a verdadeira base numérica do Manvantara) tem entre os seus divisores o 6, o 4, o 3, o 2 e o 1; porém o valor 5 é um número primo que apenas se divide pela unidade mesma. Por isto também o próprio Ano Cósmico possui duas divisões como valor par (24 ou 26 mil anos) e cinco divisões como valor ímpar (25 mil anos). É claro porém que tais percepções apenas são alcançadas através do emprego da Chave Solar da Cosmologia Oculta.
Sem hesitar, HPB tratou de teorizar também sobre as raças primitivas do Pralaya. Partindo da crença comum de ser a Noite de Brahma literalmente uma “reabsorção do Universo”, concluiu que tais raças deveriam esta evoluindo ainda em planos imateriais. Acaso a própria Ciência não poderia lhe oferecer algum respaldo aqui?! Inspirada em certas teorias exóticas da época, acreditou que os hominídeos seriam “raças primitivas”. Como a evolução das espécies homo tinham também em torno de 4 milhões de anos –uma coincidência com o Manvantara que não deveria ser casual, terá refletido ela, como tampouco seria silogismo tal associação-, provavelmente no Pralaya as raças em formação estariam ainda em outros planos. Eis aqui o apelo da fé, ao qual podemos unicamente crer ou descrer.
Para isto, deveria ainda manejar com o número fornecido de 18 milhões de anos, supostamente da chegada de Sanat Kumara,(5) marco de origem da humanidade manifestada através dos misteriosos procedimentos de Fohat que imaginou ser responsável pela "condensação da energia" para formar a matéria -invertendo a fórmula de Einstein portanto. Embora esta teoria pareça hoje sem sentido, existe outra fórmula análoga de Blavatsky que soa bastante inspirada, a saber: “Evolução é densificar o sutil e sutilizar o denso”.
Não lhe pareceu então incompatível tal número com aqueles bastante menores das origens atlantes, naturalmente muito próximo aos eventos lemurianos em tela. É fácil ver por outro lado que 18 milhões de anos integram na verdade todas as quatro rondas pelas quais a humanidade já atravessou desde o começo da sua evolução superior (que é outra informação comum na literatura teosofista), e que o Kumara em questão seria então outro, o primeiro deles chamado Sanaka ou “o Antigo”, regente da primeira ronda planetária desta nova evolução humana vinculada às Hierarquias.(6)
Aplicando a citada Chave Solar ao período em questão, teremos uns 50 mil anos, que é o ciclo em que a humanidade vive a sua “evolução superior” segundo a Ciência Moderna, destacada de sua pré-história primitiva e caótica, a partir da chamada “Revolução Cognitiva” quando o conhecimento realmente amadureceu no seio da humanidade. E é a partir destes dados científicos que a verdadeira doutrina dos ciclos espirituais poderá ser alcançada, ao lançar luzes sobre a evolução das rondas elementais e a autêntica doutrina das raças culturais.
Certamente vivemos hoje sob um “Tempo Divino” abençoado pelas Hierarquias, no rumo de uma divinização da nossa espécie orientada pelos Mestres, e em prazo muitíssimo inferior àquele que prevê o largo “Tempo Humano” materialista de erros e acertos -ou de “Bem e Mal” nas palavras do Gênesis bíblico.
2. Conclusão
Assim, a Doutrina Secreta não confessa os seus segredos, mas afirma que eles existem. E que na hora certa poderiam ser conhecidos, através de um esforço heurístico adequado. Um século foi o prazo pedido. (7) Não seria a hora então de começar a investigar aquilo que realmente existe por detrás dos diferentes véus?!
Nos últimos séculos grande parte daquilo tudo que os Saberes Antigos visavam ocultar em termos de conhecimentos objetivos tem vindo à tona através das diferentes Ciências Modernas, tal como mediante diversas novas fontes de Ensinamentos espirituais, de modo que soa absurdo se pretender seguir ocultando muitas coisas e mais ainda quando sequer se sabe o que está sendo realmente velado.
Pois por detrás de interpretações que ainda tem servido de véu para este rico documento antigo que são as Estâncias de Dzyan, podem se encontrar afinal revelações importante para o momento presente da humanidade e chaves para a superação das crises que assolam o planeta ameaçando o seu devir.
Por tudo isto é verdadeiramente chegada a hora de apresentar um novo estudo atualizado das Estâncias de Dzyan e até realizar uma revisão da Doutrina Secreta a fim de demonstrar que em meio a tantos enigmas e imprecisões, existem também muitas Pérolas de Sabedoria por descobrir e que merecem ser destacadas diante da cultura universal, capazes de atestar com eloquência a unidade tácita e a complementaridade prática entre a Ciência, a Filosofia e a Religião.
O nosso papel é apenas o de entreabrir uma porta cerrada pelo dogma e pelo mistério ocioso, de modo a encorajar outros para que possam também começar a extrair os tesouros esquecidos de sabedoria que o verdadeiro gênio de Blavatsky depositou em meio às milhares de páginas desafiadoras legadas, mesmo quando alguns conceitos mereçam ser revistos (8) -afinal bem ou mal, este foi um exaustivo trabalho coordenado pelas Hierarquias.
Notas:
1. Trata-se da Chave chamada Kunji Saurya, no clássico sobre cosmologia Surya Siddhanta, e constando já da versão original do “Glossário Teosófico” de 1892.
2. Segundo HPB os persas também deteriam estes “tempos paralelos”: “(...) o seu ‘Tempo Soberano do Longo Período’ (Zervan Dareghô Hvadâta) dura 12.000 anos, e estes são os 12.000 anos divinos de um Mahayuga, enquanto o Zervan Akarana (Tempo Ilimitado), mencionado por Zaratustra, é o Kâla, fora do espaço e do tempo, de Parabrahm.” (“Glossário Teosófico”, verbete “Yuga”). Ora, Kala pode ser também o próprio tempo comum, “ilimitado” como o samsara, diferente de eterno ou de um “Tempo Soberano” que soa este sim libertador. Correspondem ao que se conhece no Ocidente como o tempo linear e o tempo cíclico, ou em grego Kronos e Kairós.
3. Poucos místicos sabem discernir realmente entre o esotérico, o exotérico e o oculto. Leva-se às vezes vidas para alcançar tais entendimentos profundos, e raras são as Escolas também capacitadas a ensinar da maneira adequada.
4. Ou endo-exotérico, aquilo que é exterior (endo) ao exotérico, portanto o profano ou material. Trata-se de neologismo criado pela Autora.
5. Blavatsky associa também este período ao Manu Vaisvavata e ao Avatar Matsya (Peixe). Seria possível ver o arquétipo de Peixes em plena Era de Virgem? O conceito de “enantiodroamia dos opostos” de Heráclito (adaptado por Carl G. Jung) trata da compensação das energias, razão pela qual os avatares teriam o signo oposto ao da Era em questão –tal como demonstrou a astróloga esotérica Ema C. de Mascheville.
6. “Sanat Kumara veio de Vênus”, escreveu Blavatsky, ou antes na Ronda Venusiana (leia-se: quaternária) da Terra, corrigiu Alice A. Bailey; estamos afinal no campo da Astrologia e não da Astronomia.
7. A “profecia” de HPB sobre a vinda de um novo ciclo maior de Ensinamentos da Hierarquia para depois de 1975 encontra-se em diversos locais das suas obras, com destaque para a sua Introdução ao Volume I da Doutrina Secreta.
* Sobre o Autor:
Luís A. W. Salvi é estudioso da Teosofia e dos Mistérios Antigos há mais de 40 anos. Especialista nas Filosofias do Tempo tradicionais, publicou a Revista Órion de Ciência Astrológica pela FEEU e dezenas de obras pelo Editorial Agartha. Na última década vem redirecionando os seus conhecimentos para a Teosofia, realizando uma exegese ampla da Doutrina Secreta e também das Estâncias de Dzyan.
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